BARQUEIRO QUE EU SOU...

Conheço o rio, o rio me conhece: entre suas margens iguais, sobre suas ondas iguais, minha vida se desenrola neutra, esquecida do mundo.
Já nem sei mais há quanto tempo sou prisioneiro dessas margens. Minha memória não guarda nada mais que essas ondas iguais, essas margens iguais, que são todo o meu horizonte.
Só o rio me conhece, conhece essa vida que se desenrola – neutra, esquecida do mundo – como essas plantas aquáticas, que o tédio consome.
Ah, o tédio! Toda uma existência e apenas esse rio, essas ondas iguais, sempre iguais, essas margens, que são todo o meu horizonte.
Dentro de mim há algumas memórias, sim: coisas passadas, cores, idéias. Mas são apenas coisas, cores, idéias do rio, desse rio inexoravelmente o mesmo, sempre silencioso e determinado, como meu próprio tédio.
Tédio de existir sempre prisioneiro de duas margens iguais, ao balanço de ondas iguais, sempre indiferentes à angústia dessas plantas anônimas, neutras como a minha vida, como ela consumidas em tédio.
A margem esquerda... A margem direita...
Pouco importa o lado de que fiquem, elas são iguais: o meu horizonte. Todo o meu horizonte.
Se vos acercásseis de mim agora, se me dissésseis: Oh, barqueiro! Leva-me desta àquela margem!, eu vos levaria.
– Desta àquela margem.
Eu sou um barqueiro: essa a minha missão.
Entretanto sei que não existe essa, nem aquela margem, mas apenas a margem, não importa o lado de que fique, nem porque idas de uma para outra.
Porque uma vez atravessado o rio, ir-vos-eis, mas convosco não irá o barqueiro, nem vos lembrareis mais do barqueiro.
Porque não conheceis o meu tédio.
Esse tédio imenso, esse tédio esmagador de viver entre duas margens iguais, sobre neutras ondas iguais, de só conhecer o rio e só ser conhecido pelo rio.
De se consumir assim, como essas anônimas plantas aquáticas, que se consomem no tédio.
Perguntareis: "Oh, barqueiro, quem és, enfim, donde vens?”; responderei, mas minha resposta não vos satisfará.
Eu só posso dizer que sou um barqueiro e que venho da outra margem. A outra margem horrivelmente igual, infinitamente igual a esta.
Mas, em verdade, não vos importa saber quem sou e donde venho, pois, atravessando o rio, ir-vos-eis e não irá convosco o barqueiro e esquecereis o barqueiro.
Pois não conheceis o que é esse meu tédio.
O tédio das margens iguais.
Às vezes, pressinto que o vento que sopra quer me segredar qualquer coisa.
A brisa é tão doce quando o crepúsculo se abate sobre o meu tédio.
As plantas se curvam docilmente ao toque da brisa, ao crepúsculo: parece-me então ouvir misteriosas vozes, vozes do vento. Mas já não sei mais entender o vento e o vento passa e o meu tédio fica.
Depois vem a noite...
O barco, ao relento, balança ao balanço das ondas iguais.
O céu transparente parece que brilha no fundo do rio.
– Barqueiro! Barqueiro!
Será que as estrelas me chamam em noites assim?
O sonho...
Não! O tédio.
Que sabe um pobre barqueiro de sonhos?
O tédio.
Que sabe um pobre barqueiro de fantasias?
A fantasia...
O tédio.
– A fantasia! A fantasia!
A fuga pelo espírito! Por que não romper as cadeias que pesam, que tolhem, que inibem?
O sonho...
Por que suportar o horizonte das margens? Das margens iguais, infinitamente iguais?
– Barqueiro!
As vozes do vento. As vozes das estrelas.
– Barqueiro... Barqueiro... Barqueiro...
– Que sois? De onde viestes quebrar o meu tédio? O vento vos trouxe? Viestes do céu?
Será que o delírio tomou minha mente?

" – Nós somos do mundo do sonho
Das fantasias humanas
Ouvimos a tua angústia
Sentimos a tua angústia
Nascemos da tua angústia
O teu tédio nos gerou
No fundo das águas
Na luz das estrelas
No vento que sopra
No caule das plantas
Nos velhos castelos
Nos velhos navios
Jazíamos à espera do teu grito
E nos geraste assim
Nós nascemos assim
Dos gritos de tédio é que nasce a fantasia".

Quem é que me chama em noites assim? Que seres rondarão o meu rio? Que querem esses seres?
Que vozes são estas?
É o sonho que vem...
– Barqueiro!
É o sonho...
– Barqueiro!
Que se quebrem as cadeias do tédio. Rompa-se esse horizonte triste de margens iguais.
Oh, seres do mundo impossível, oh, seres queridos!
Vinde, oh, filhos do meu tédio. Libertai-me da realidade.
Vinde! Aparecei!